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Editorial

De quem é a praia?

É preciso bom senso e um equilíbrio que cada cidade precisa encontrar; veja matéria da Revista Problemas Brasileiros

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De quem é a praia?
O decreto pretende preservar a ordem urbana, a segurança pública e o meio ambiente

Na altura do Posto 1, na Praia do Leme, na zona sul da capital do Rio de Janeiro, duas pessoas tentam se localizar pelo celular: “Tu tá no Ponto G? Mas cadê o Ponto G? Não estou achando”. Um dos locais mais populares entre a população LGBTQIA+, a barraca mantinha uma enorme bandeira de arco-íris como referência e identidade. Ali ao lado, o Rasta Beach, outra barraca popular no Leme, levantava a cada manhã a bandeira do movimento rastafári. Desde junho, no entanto, os barraqueiros das orlas cariocas deixaram de hastear suas marcas registradas.

Isso aconteceu porque, em maio, o prefeito Eduardo Paes (PSD) publicou um decreto que proibia não apenas as bandeiras, como também os nomes das barracas, que passariam a ser identificadas apenas pelo número. Proibia, também, a utilização de caixas de som nas praias, apresentações musicais nos quiosques — quase todos contratam artistas para atrair turistas —, venda de bebidas em garrafas de vidro e utilização de estruturas de comércio ambulantes sem autorização, como as tão conhecidas carrocinhas de milho. Prometeu, ainda, fiscalizar os ambulantes que circulam pelas areias com churrasquinhos e bebidas.

Segundo a prefeitura, o decreto pretende “preservar a ordem urbana, a segurança pública e o meio ambiente, além de assegurar uma convivência mais harmoniosa na utilização do espaço público entre frequentadores, trabalhadores, turistas e moradores da cidade”. Também explicou que o objetivo é “proibir a realização de qualquer atividade que viole o ordenamento urbano e o uso regular do espaço público, inclusive por ambulantes não autorizados”.

A decisão polêmica movimentou a cidade, e Paes precisou recuar. Poucos dias depois, o prefeito liberou os nomes nas barracas, desde que mantivessem placas de identificação com até 3 metros de comprimento e 40 centímetros de altura; as apresentações musicais só podem ocorrer entre as 12h e as 22h; e as bandeiras, com mastros e suportes, foram liberadas até uma nova regulamentação.

Os barraqueiros alegam que, apesar da liberação provisória, seguem proibidos de hastear as bandeiras. “Se a gente colocar, eles vêm aplicar multa. Muitos clientes ligam perguntando onde está a barraca. As crianças que se perdiam dos pais vinham aqui, porque era um ponto de referência fácil de encontrar”, reclama Luiz Guilherme, dono do Ponto G. Os nomes das barracas perderam as cores — todos devem ser em preto e branco, na mesma fonte e no mesmo tamanho, dificultando a distinção entre elas.

“Não é algo que vai mudar o comportamento das pessoas. A lei do carioca, às vezes, não é tão seguida assim. A gente conhece muito bem como é o Rio de Janeiro, não acho que será um impeditivo de utilização da praia”, opina o economista Guilherme Dietze, presidente do Conselho de Turismo da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). “É importante haver regras, mas se restringirem demais os quiosques e as barracas, como as pessoas vão consumir? É preciso bom senso e um equilíbrio que cada cidade precisa encontrar”, pondera.

Ponte aérea

No litoral paulista, em Ubatuba, a Câmara Municipal aprovou um Projeto de Lei (PL) para proibir o uso de tendas e barracas. O vereador Gady Gonzalez (MDB), autor do PL, justifica que “a crescente instalação de tendas e estruturas de grande porte compromete a circulação das pessoas, a limpeza da faixa de areia e o paisagismo natural, além de representar riscos ao meio ambiente decorrentes do acúmulo de resíduos”.

A prefeitura se isentou do debate e nem sequer aprovou, rejeitou ou alterou o PL, apenas o ignorou. Assim, a Câmara teve o direito de aprovar por conta própria as novas regras. Desde então, ao contrário do costume paulista de montar barracas nas praias, os turistas podem levar apenas guarda-sóis de até 3 metros — e, caso descumpram, podem ter seus itens apreendidos e levar uma multa de R$ 1 mil. Ambulantes também só poderão montar as barracas se tiverem autorização do Poder Público.

Os dados econômicos explicam essa disputa entre a preservação ambiental e o controle das atividades nas orlas do litoral brasileiro, que se estende por mais de 7,3 mil quilômetros. Segundo dados do Ministério do Turismo, 35% dos brasileiros procuram as praias para viagens a lazer. No último verão, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o setor de Turismo movimentou mais de R$ 150 bilhões. E a capital fluminense é o destino mais procurado pelos brasileiros, segundo o anuário da Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa). No ano passado, a cidade recebeu mais de 10 milhões de turistas nacionais e 1,3 milhões de visitantes estrangeiros, segundo dados da Secretaria Municipal de Turismo (Setur). Só na alta temporada, entre dezembro de 2024 e março de 2025, o município arrecadou mais de R$ 100 milhões em impostos — em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, no início do ano, Paes disse trabalhar para aumentar ainda mais os indicadores do setor.

Praia para quem?

Se o som dos quiosques incomoda os moradores da zona sul carioca, do outro lado da cidade, na Barra da Tijuca, um empreendimento de alto luxo extrapola os decibéis permitidos pela lei há anos. Moradores relatam que o som estremece as paredes e as luzes dos holofotes invadem as casas. Desde 2015, corria um processo para impedir a produção de eventos com música no Rio Beach Club. Oito anos depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que o clube só poderia continuar com as atividades se regularizasse o espaço, com obras de isolamento acústico. Até o fim de maio, no entanto, as festas seguiam ocorrendo — assim como as reclamações dos vizinhos.

Não é só o Rio de Janeiro que toma medidas para limpar os cenários das praias e torná-los esteticamente mais bonitos. Em todo o litoral paulista existem, há anos, regras, taxas e burocracias para que os ônibus que fazem bate e volta sejam mais restritos. A ideia é preservar o meio ambiente, mas também evitar que turistas de baixa renda, que quase não gastam dinheiro nas praias, escolham as cidades litorâneas como opção de lazer. “Vejo [esses decretos e leis] como um processo de gentrificação e higienização das praias. A ideia é que tenham uma estética diferente da que têm. E o ambulante, por exemplo, não está inserido nela”, afirma a geógrafa Gilselia Moreira, doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), que desenvolve estudos sobre a mercantilização e a verticalização do espaço urbano, em especial do litoral brasileiro. “Sempre existe a justificativa de preservação do meio ambiente, mas não faz sentido. Em Ilhéus [sul da Bahia], por exemplo, o governo reivindicou terrenos onde ficavam os barraqueiros para assegurar a segurança das praias e do meio ambiente. Mas isso é só um álibi. Porque, mais adiante, constatamos que os terrenos dessas regiões estão sendo invadidos por construções de condomínios fechados de classes média e alta”, critica.

Pelo meio ambiente?

O Rio Beach Club, bem como as casas em seu entorno, nem sequer deveriam ter sido construídos. O empreendimento fica na Ilha da Coroa, uma reserva ecológica protegida por lei desde 1978. O STJ condenou os proprietários a pagarem indenização pelo dano ecológico causado pelo imóvel. O estabelecimento não é o único beach club da cidade — uma moda inspirada na Europa, onde as praias são privadas — em situação irregular.

No fim de maio, o Ministério Público Federal (MPF) pediu a demolição de outros dois beach clubs, no Leblon e em Ipanema, e a paralisação das obras de um terceiro. Segundo o processo, todos ocupam um espaço maior do que o permitido — isto é, apropriam-se de áreas que pertencem à União. Os governos federal e municipal também são investigados pelo MPF por terem autorizado as obras, apesar das irregularidades.

Não são poucos os casos de construções de luxo em situações parecidas. Em 2021, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) mandou derrubar parcialmente beach clubs na Praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis, Santa Catarina, por causa da destruição de vegetação de restinga. Em junho de 2025, o MPF ordenou a demolição de três residências luxuosas à beira-mar na Praia da Lagoinha, em Ubatuba, São Paulo. Em Alagoas, o MP estadual notificou um resort, em Japaratinga, em 2023; e, em 2024, o MPF ajuizou ação contra um hotel de luxo, em Passo de Camaragibe, ambos por construções irregulares de muros e portões, bloqueando acessos às praias. Na Praia do Forte, em Salvador, Bahia, anos atrás, o Tivoli Resort foi denunciado pelo Ibama pela construção de um paredão de pedra para conter o mar.

“As ondas carregam muita energia, principalmente em épocas de ressaca e de tempestades. Quando a onda chega à areia, ela diminui, perde força, porque a água penetra ali, e essa energia diminui. A vegetação de restinga também cumpre esse papel, para além de toda a diversidade do ecossistema”, diz o oceanógrafo Marcelo Sperle, professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “Então, qualquer estrutura rígida que se coloque ali na parte superior das praias já vai destruir a vegetação de restinga e causar um impacto ambiental enorme. Quando a onda bate, é como se jogasse água numa parede, que bate e volta. E quando volta, leva consigo parte da areia daquela praia. Depois, essas pessoas reclamam que o mar bateu e levou tudo.”

Sperle menciona a intervenção realizada, em 2021, em Balneário Camboriú, Santa Catarina, porque os prédios altos e irregulares faziam com que as areias ficassem a maior parte do dia sob a sombra. As obras cumpriram o objetivo, que era alargar a faixa de areia e diminuir a área de sombra, mas, dois anos depois, cerca de 70 metros em um dos trechos já haviam sido engolidos pelo mar. “Não houve estudos. Buscaram areia numa região próxima porque ficava mais barato. Entretanto, seria preciso analisar a gramatura da areia, o que não foi feito. Colocaram uma areia muito mais fina, que está indo embora”, explica. “E os comércios da orla faliram, porque as pessoas ficaram a 200 metros de distância e deixaram de ir até lá. Era preciso fazer um plano de gerenciamento, com estudos — oceanográficos, geográficos e biológicos, além de sociais, econômicos e turísticos. É uma questão multidisciplinar. Na verdade, o ideal é que todos aqueles prédios irregulares fossem demolidos. Mas quem vai fazer isso?”, questiona o pesquisador.

Questão nacional

Enquanto as discussões sobre o gerenciamento das orlas seguem em alta, no Senado tramita a polêmica PEC das Praias. A proposta tem o propósito de transferir a propriedade de áreas hoje pertencentes à União — como terrenos de marinha e faixas costeiras — para Estados, municípios e atuais ocupantes. Na prática, abre caminho para a privatização de regiões litorâneas inteiras, incluindo áreas de preservação ambiental e praias de uso coletivo. De acordo com especialistas e movimentos sociais, a medida ameaça o acesso público ao litoral, favorece a especulação imobiliária e fragiliza o controle ambiental sobre uma das zonas mais sensíveis do País.

O discurso da preservação ambiental, tão usado para justificar as novas regras de reordenamento das orlas, faria sentido se fosse baseado na própria legislação brasileira. Segundo Sperle, da UERJ, se fossem cumpridas à risca as diretrizes do Projeto Orla e da Lei de Gerenciamento Costeiro, nem mesmo os quiosques e as ciclovias que dominam as orlas urbanas estariam ali. A seletividade na aplicação das normas escancara um conflito maior: o meio ambiente vira argumento, enquanto o real motor das decisões é o projeto de cidade (e de praia) que se quer construir.

O que diz a lei?

Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC) — Lei 7.661/1988

Estabelece regras para o uso e a ocupação da costa brasileira, garantindo acesso livre às praias, exigindo licenciamento ambiental para atividades no litoral e determinando que Estados e municípios criem planos de gerenciamento costeiro com diretrizes específicas. Veda ocupações privadas em áreas de marinha — 33 metros a partir da linha da maré alta, que pertencem à União — e prevê o controle da erosão e a proteção de ecossistemas sensíveis, como restingas e manguezais.

Projeto Orla — Decreto 5.300/2004

Define que construções na orla, como quiosques e ciclovias, só podem ocorrer se forem previstas em planos municipais integrados, com base em estudos ambientais, sociais e paisagísticos. Orienta, por exemplo, que construções em áreas urbanas fiquem a 50 metros de distância do mar.

Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.

A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.

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