Editorial
25/08/2025Varejo gasta bilhões de reais todos os anos para se proteger da violência urbana
Os altos custos com sistemas de segurança não afetam apenas o orçamento do setor; veja a reportagem da Revista Problemas Brasileiros

A partir de 2022, após crises sucessivas na cracolândia — um quadrado no centro de São Paulo que reunia perto de 600 usuários de drogas —, a prefeitura decidiu mudar a abordagem: de um atendimento passivo e assistido às pessoas que viviam ali, a administração instalou um conjunto de cercas no espaço e, em paralelo, pediu à Polícia Militar para patrulhar as ruas do entorno. A ideia era restringir o local a um pequeno perímetro relativamente distante das avenidas movimentadas da cidade para, depois, tomar alguma medida com as pessoas em si.
O problema é que, além da cracolândia, o local abriga também uma das ruas de comércio mais relevantes da metrópole e, por consequência, do País: a Santa Ifigênia — reduto de lojas de eletroeletrônicos diversos, de videogames a antenas de televisão; de instrumentos musicais a celulares. A União Santa Ifigênia (USI), uma das associações que reúnem comerciantes e moradores, afirma que, naquele ano, cerca de 100 mil pessoas passavam pela rua diariamente em busca desse tipo de produto. Atualmente, circulam na região em torno de 10 mil pessoas.
“Foi um problema”, lamenta Fabio Pina, assessor econômico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). A reação de Pina decorre do que aconteceu depois do cerco policial: usuários da cracolândia dispersaram-se pelo centro e por outros bairros — mas, antes, saquearam as lojas da Santa Ifigênia como represália à medida. As ações continuaram nos meses seguintes e, até meados de 2024, ainda havia ocorrências de roubos, furtos e saques na área. Recentemente, a USI calculou o prejuízo dos lojistas: pelo menos R$ 300 mil.
Não demorou para que estabelecimentos começassem a fugir da região e, em janeiro do ano passado, as galerias da Santa Ifigênia já registravam 60% de vacância. “A rua morreu”, testemunha um empreendedor local que pediu para não ser identificado. “Esse abandono acontece porque os comerciantes têm duas opções: ou ficam ali e arcam com os altos custos de segurança — câmeras, alarmes, sistemas etc. —, ou abrem mão de um ponto de circulação em massa como a Santa Ifigênia para trabalhar mais tranquilamente”, pontua Pina.
O cálculo da insegurança
No ano passado, o assessor da FecomercioSP, ao colocar na ponta do lápis os custos da violência urbana para o varejo paulistano, descobriu que empresas do setor gastam R$ 60 bilhões diretamente, por ano, em sistemas para lidar com a insegurança pública. Considerando os chamados custos indiretos, como impostos, o montante chega a R$ 200 bilhões. “E o perverso é que, mesmo com todo esse dinheiro, a segurança não está garantida”, alerta Pina.
Os dados da capital paulista são só a ponta do iceberg. A Associação Brasileira de Prevenção de Perdas (Abrappe), fundada em 2018 justamente para medir o custo dos desperdícios no varejo, publicou recentemente um estudo mostrando um prejuízo total de R$ 36,5 bilhões, em 2024, para o setor com estoques perdidos. Além de falhas técnicas e erros de planejamento, que representam cerca de 60% desse valor, entram na conta as chamadas perdas desconhecidas, como fraudes, furtos e roubos. No ano passado, o varejo perdeu 1,51% de todo o estoque por esses motivos.
De acordo com os dados da Abrappe, dois segmentos foram os mais afetados pela violência: o “atacarejo” (negócios que vendem tanto no atacado quanto no varejo), cujas perdas aumentaram 48,1% no período, e as farmácias e perfumarias, com alta de 39%. Considerando as perdas totais, os mercados lideram, com perdas de 3,3% dos estoques ao longo do ano, seguidos pelas farmácias, com 1,25%.
Carlos Eduardo Santos, presidente da Abrappe, explica que é possível fazer uma divisão entre dois tipos de negócios diante desses dados — aqueles que conseguem gerir melhor as perdas e os que não têm essa condição. “Se uma empresa administra bem as perdas, o impacto é verificado nas margens de lucro e, a partir disso, pode ser mais agressiva nos preços. Isso significa aumento de competitividade e, claro, mais vendas”, explica. “Mas, no caso de empresas que não conseguem fazer essa gestão, a margem fica menor — elas sobem o preço e perdem competitividade ou, então, seguem com a margem menor, o que pode inviabilizar o negócio”, completa.
O ponto é que a insegurança é uma variável incerta. De acordo com os dados da Abrappe, aproximadamente 40% das perdas totais de estoques em 2024 foram causadas por motivos desconhecidos. Dessa taxa, metade resulta de furtos. “Os negócios não têm outra opção a não ser investir em algum tipo de segurança. Monitoramento, tecnologia e vigilância particular. Anualmente, perto de 1% do faturamento líquido vai para a segurança”, aponta.
Canetas na mira
O caso das farmácias é especial: a alta de 48% nas perdas de estoques, pelos números da Abrappe, revela um fenômeno novo, segundo Rafael Espinhel, advogado que já atuou como consultor jurídico no Sindicato do Comércio Varejista de Produtos Farmacêuticos do Estado de São Paulo (Sincofarma) e, atualmente, é presidente-executivo da Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico (Abcfarma): a demanda por canetas emagrecedoras. “Seis em cada dez farmácias de São Paulo são de pequeno porte, estão no Simples Nacional e têm faturamento líquido de até R$ 50 mil. Esses negócios estão nas periferias e, por isso, mais sujeitos a furtos”, observa. “E essas perdas aconteceram por um motivo específico, o Ozempic”, continua. “Não se trata apenas de um produto caro. É também um produto famoso, que atrai atenção”, ressalta.
Segundo dados do Sincofarma, os furtos desses itens — Ozempic, mas também Wegovy, Venvanse e Ritalina — cresceram 111% somente nos dois primeiros meses deste ano em relação ao mesmo período de 2024. E, de acordo com a Abrappe, o aumento dos furtos no segmento farmacêutico foi de 29% em 2024.
Inteligência de menos
O analista criminal Guaracy Mingardi, associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), é taxativo no diagnóstico: o problema é a falta de inteligência em comparação com o excesso de contingente. “O que ocorreu na Cracolândia é, inclusive, a demonstração disso. A Polícia Militar ocupou o local, cercou os usuários e os dispersou pela cidade sem nenhum tipo de planejamento sobre os efeitos da operação”, afirma.
Segundo o especialista, o fato é que, enquanto a PM ganha novos agentes periodicamente, as áreas que resolvem crimes — como a Polícia Civil — vêm sendo, em todos os governos, sucateadas. “Em outras palavras, estamos correndo atrás de quem pratica o crime, mas não sabemos de onde ele é demandado”, avalia.
Mingardi diz que, além disso, a falta de planejamento dificulta a interlocução entre agentes de segurança e os atores locais, como os lojistas. “Se há agentes nos bairros, que conhecem bem o território e conversam com os comerciantes e os moradores, há chance de entender as dinâmicas localizadas do crime — e de agir sobre ele”, destaca.
Segundo Pina, da FecomercioSP, uma maneira de colocar os comerciantes no jogo já está em curso. Há um plano para integrar o sistema policial com as câmeras particulares que, atualmente, fazem parte do custo de R$ 60 bilhões anuais só na Cidade de São Paulo. Em agosto, o governador do Estado, Tarcísio de Freitas, afirmou que esse será o próximo passo do programa Smart Sampa, da Prefeitura de São Paulo. “A tendência é de que as respostas aos casos de violência sejam mais rápidas, de fato”, afirma o economista.
No bolso do consumidor
Os altos custos com sistemas de segurança não afetam apenas o orçamento do varejo. No estudo que produziu para a FecomercioSP, Pina notou também que os consumidores pagam mais caro por produtos e serviços à medida em que essa carga é embutida no preço final.
Na capital paulista, se somado o consumo de um ano inteiro, cada pessoa gasta R$ 1.360 só com esse “custo social da violência”, como Pina chama. Mas, somando gastos indiretos, o valor chega a R$ 4.540. “E para o empresariado, esse volume de recursos seria valioso para investir em inovação e contratações. No limite, é um problema para a economia do País, que perde dinamismo”, finaliza.
Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.
A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.
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